Se tem algo frustrante para um conselheiro municipal da criança e do adolescente é perceber que as pessoas da rede local não dão a mesma importância que você a um processo crítico como um diagnóstico.
Para um CMDCA, é muito difícil desenhar políticas efetivas sem uma visão abrangente da realidade das crianças e adolescentes no município. De tempos em tempos, é necessário investir num processo cuidadoso e sistemático para atualizar a visão de toda a rede, não só dos conselheiros.
No dia a dia, a percepção de cada ente da rede, seja governamental ou não governamental, acaba sendo influenciada e pode se tornar viesada em função daquilo que chega como demanda urgente, interesses políticos, necessidades mal assumidas e mesmo pelo desejo de fazer alguma diferença.
Qualquer sistema precisa, de vez em quando, dar uma parada para “colocar a cabeça para fora d’água” e “olhar de cima a floresta toda” para reorientar o pensamento, acalmar o coração e dar força à vontade, requisitos para persistir na garantia dos direitos daqueles que realmente nos interessam: as crianças e os adolescentes.
O modo como vemos a realidade também determina a realidade tal como ela é. Certa vez, passei uma tarde com os conselheiros de uma cidade do interior de Minas Gerais ouvindo eles comentarem como os jovens eram relapsos e preguiçosos. Com esse olhar, a principal política que eles cogitavam para a cidade era de combate às drogas.
Felizmente, alguém sugeriu fazerem uma pesquisa com os próprios jovens, pois eles não estavam ali representados.
Com isso, descobriram que os jovens queriam muito praticar esportes e participar de atividades culturais, mas a cidade não tinha nem espaços, nem oportunidades para isso. Aquela cidade simplesmente havia “esquecido” os jovens nas últimas décadas e nenhuma política tinha sido adotada com relação a eles. Ou seja, eles descobriram que, ao contrário do que pensavam inicialmente, não eram os jovens que não queriam nada, era justamente o oposto: a cidade é que não queria nada com eles, há muito tempo!
O Conselho pode assumir essa responsabilidade de provocar essa revisão dos olhares através de um processo de diagnóstico municipal da garantia dos direitos das crianças e adolescentes.
Pela experiência que temos tido em alguns municípios paulistas há alguns anos, é preciso tomar certos cuidados na condução de um diagnóstico para se ter sucesso na empreita. O principal deles é saber reconhecer fases distintas no processo.
Cada fase tem uma natureza diferente e, por isso, requisitos diferentes. O primeiro cuidado é zelar para que as atividades que ocorrerem a cada momento sejam coerentes com a natureza da fase em que se está. Isso também significa alinhar expectativas: não adianta esperar algo que não seja condizente com aquela etapa, tampouco querer que uma etapa funcione se a etapa anterior não foi corretamente conduzida.
Reconhecemos, na prática, pelo menos 4 etapas distintas pelas quais passa um bom processo de diagnóstico municipal:
A etapa de mobilização costuma ser a mais importante: quanto mais as pessoas e instituições estiverem mobilizadas para o diagnóstico, melhor ele vai ser. É a mobilização bem feita que fará com que os técnicos e dirigentes da rede municipal tenham interesse e reservem tempo nas suas agendas para conversar sobre os dados levantados. Uma boa mobilização é que vai fazer com que as instituições tornem os seus dados acessíveis e os disponibilizem para a rede.
Finalmente, é durante a mobilização que se vai assegurar recursos a serem investidos para que o diagnóstico municipal aconteça.
Normalmente, as pessoas se mobilizam para um diagnóstico quando percebem que ele vai servir como uma oportunidade para construir boas respostas para as suas perguntas. Reunir as pessoas da rede para formularem e agruparem as suas perguntas para que estas orientem o diagnóstico pode ser uma atividade a ser feita durante esta etapa de mobilização.
Uma condição essencial para o processo de diagnóstico é uma comunicação bem estabelecida entre as pessoas e instituições interessadas e isso se constrói numa boa mobilização.
A etapa de mobilização termina quando se formou um grupo de coordenação do processo, quando os líderes da maioria das instituições se comprometeram com o projeto, quando houve um edital bem realizado de contratação de ajuda técnica de apoio e quando todas as condições para as próximas etapas foram construídas.
Quando somente um pequeno grupo de pessoas está sensibilizado para o diagnóstico, então a mobilização foi um fracasso. Talvez seja preciso considerar que a mobilização ainda está em andamento e se empenhar nela ao invés de “forçar a barra” e seguir adiante.
Com uma mobilização bem feita, a coleta de dados tem tudo para ser rica e cheia de surpresas. Nesta etapa, são reunidos os dados das fontes oficiais e os dados locais, coletados diariamente pelos múltiplos entes que compõem a rede. Esses dados são colocados em tabelas e gráficos para facilitar o seu entendimento e relacionados entre si. Um diagnóstico bem feito se baseia tanto em dados gerais, regularmente produzidos por instituições como IBGE e PNUD, quanto dados específicos, produzidos pelas entidades locais da rede. Esses dados locais podem se referir somente a um bairro ou público, mas são essenciais para darem uma boa visão atual da realidade no município.
Um bom sistema pode ser muito útil, nesta fase, para permitir que as próprias pessoas produzam as informações para a rede, para juntar todos os dados produzidos de modo compreensível e por coloca-los automaticamente à disposição de todos os interessados.
A etapa de coleta de dados estará concluída quando todas as instituições da rede tiverem à sua disposição um relatório reunindo as informações essenciais a respeito da situação das crianças e adolescentes na cidade, com parâmetros para comparação.
Para transformar informação em conhecimento, é fundamental que haja conversas de construção de sentido. A pergunta central desta etapa costuma ser: “o que todos esses dados significam?”.
Pode não ser fácil produzir boas conclusões a partir de um conjunto de informações, especialmente quando não estamos familiarizados com elas. Pode ser que as professoras das escolas tenham dificuldade para interpretar as informações da secretaria de planejamento sobre crescimento imobiliário e vice-versa. Apropriar-se dos dados exige paciência e esforço e nesta etapa espera-se que as pessoas da rede se ajudem. Nas conversas, pode ser muito útil abrir espaços para que as informações sejam explicadas e compreendidas, não só apresentadas.
Quando múltiplos olhares e perspectivas se cruzam, novas sacadas e ideias tendem a ser produzidas. Em alguns municípios em que participamos do diagnóstico, houve encontros entre técnicos, encontros entre dirigentes e encontros com as comunidades para processar os dados coletados e sempre sentimos que algo novo foi agregado para todo mundo que participou.
Um cuidado a ser tomado na construção de sentido é suportar os estranhamentos: eles fatalmente acontecerão. Na prática, isso implica suspender os julgamentos: primeiro, conhecer os dados; segundo, compreender o que eles significam sob vários pontos de vista; por fim, relacioná-los a outros dados. Somente daí o grupo estará realmente pronto para dar significado a eles, conjuntamente.
Fazer perguntas para as quais não se tem respostas maduras é uma excelente técnica para ajudar grupos a colaborarem na construção de sentidos.
Quando um grupo sucumbe aos estranhamentos, porém, os estereótipos e preconceitos acabam não sendo desafiados e se convertem em uma pobreza de ideias e em dificuldades nas relações. Uma boa construção de sentido é criativa, uma má construção de sentido não passa de uma reafirmação de opiniões formadas anteriormente.
Quando as pessoas da rede compreendem profundamente os significados dos dados levantados, pode-se esperar que naturalmente emerjam novas ideias de projetos e políticas. Isso se chama cocriação.
Com uma consciência expandida da realidade, provavelmente as pessoas terão ideias de projetos e políticas que podem transformá-la. Essas ideias tendem a se incorporar espontaneamente nas suas organizações, através dos seus programas e atividades. Não é preciso que um Conselho faça um plano e diga o que elas precisam fazer. Se o processo correu bem até aqui, as pessoas saberão o que é importante fazer, terão entusiasmo e tomarão iniciativas nos seu âmbito de responsabilidade.
O melhor de tudo, porém, é o surgimento de projetos comuns: projetos que envolvem mais de uma instituição, mais de uma área, multi e transdisciplinares. Se o percurso foi bem cuidado, essa possibilidade se multiplica, pois as pessoas se conhecem, existe uma compreensão compartilhada da realidade, valoriza-se o que cada uma pode agregar e vislumbram-se novas possibilidades de transformação.
O Conselho, a partir de todos esses insumos, terá a oportunidade de se concentrar naquilo que é mais importante e planejar e desenhar políticas que garantam efetividade e sinergia às iniciativas emergentes, bem como fomentar esforços e investimentos naquilo que porventura ficou como lacuna ou prioridade ainda a ser atendida.
Cada uma das reuniões do Conselho poderá se transformar em oportunidade única de articulação e de aprendizagem, capaz de potencializar o trabalho dos entes da rede, bem como de formação de novos líderes para os novos tempos.
Tudo isso pode parecer utópico, mas utopia é aquilo que ainda não foi plenamente realizado. O que foi descrito aqui, com base na experiência com diferentes municípios e do contato com diversas instituições, somente vai se concretizar se houver um cuidado rigoroso com o processo, etapa por etapa.
Cada etapa bem conduzida prepara o terreno para a próxima. A liderança madura reconhece o estágio real do processo e facilita o seu desenrolar.
Nosso país precisa disso neste momento.
Criado em 01/10/2018
Antonio Luiz de Paula e Silva
Facilitador, empreendedor social, educador com mais de 25 anos de experiência em consultoria e desenvolvimento de organizações, grupos e pessoas. É fellow da Ashoka Empreendedores Sociais (1988) e consultor do IMO Brasil.
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